segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Escondido porque precioso


Em tempos de overdoses de marketing pessoal, relacionamentos funcionais e excesso nauseante de promoção da autoimagem nas redes sociais, sob a máxima de "quem não é visto não é lembrado", estamos vivendo sob a ditadura da vitrine: ou aparecemos, ou não vivemos. Quem mais aparece, mais parece valer, mas isso tem se revelado cansativo e banalizante.

Contudo, a Bíblia traz uma notícia libertadora quanto à escravidão a esse sistema: "Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará" (Salmo 91). Há verdadeiro descanso em esconder-se em Deus; Nele você vale o que Ele diz. Não é mais preciso ir para a vitrine para ser valorizado. Muitas pessoas se põem na vitrine para provocar reações nos outros e sentirem-se valorizadas. O problema é que estar na vitrine é exatamente o oposto do que se pretende: você não está se valorizando, está em liquidação.

Por outro lado, estar escondido, sem se preocupar com a exposição de sua autoimagem, significa se valorizar. Na Páscoa, por exemplo, a criança que procura o chocolate escondido o tem por mais precioso (e até mais saboroso) do que qualquer outro doce que possa saborear ordinariamente. O tesouro escondido foi escondido exatamente por ser valioso. Se fosse vulgar, seria fartamente ofertado, e possuído por qualquer um sem comprometimento sério e definitivo.

Pela mesma razão, consideramos os segredos mais preciosos do que a tagarelice; os pássaros de canto raro são os mais extraordinários. Até o mundo da moda começa a concordar que o misterioso é mais atraente do que o transparente. De fato, tudo que é raro e exige investimento para ser descoberto e conhecido é valioso. E a pessoa que se dá ao trabalho de procurar por isso também é digna de valor. Aquele que procura um tesouro mostra nisso seu próprio valor. De modo que há aqui triplo valor: vale o que foi achado; vale a procura em si; e vale também quem fez a descoberta.

E nessa misteriosa e paciente exploração, tanto quem foi descoberto como quem finalmente encontra o que busca com afinco e devoção, se valorizam mutuamente sempre, e se tornam cada vez mais preciosos no Eterno. Provavelmente assim, oculto, demore mais do que na vitrine para lhe encontrarem; mas não se iluda nem se compare. É impossível não erguer um sorriso ao se descobrir que as pessoas mais escondidas em Deus são também as mais notáveis.

"Pois morrestes, e a vossa vida está oculta com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com Ele em glória" (Cl 3.3,4)

"E na verdade tenho também por perda todas as coisas... para que possa ganhar a Cristo, e seja achado Nele" (Fp 3.8,9)

sábado, 27 de dezembro de 2014

Realidade e Fantasia - O grande banquete


A visão de mundo para um cristão é tão diferente da normalidade, que se você não for um deles terá a certeza de que enlouqueceram. O conceito de realidade e fantasia é uma amostra disso. Para um ateu, por exemplo, a realidade é o que se pode ver e comprovar. O que foge disso é tido como uma leitura equivocada, uma interpretação falsa da realidade, fruto de ignorância e folclore, de imaginação e de fantasia. Para um cristão, entretanto, este conceito de realidade é que é loucura; ou, no mínimo, um trágico empobrecimento na compreensão da realidade da vida.

Para um cristão, a realidade vai além do que se vê. Esta realidade revela-se muitas vezes, embora constantemente não sejamos capazes de percebê-la ou comprová-la. Se nossas “antenas espirituais” não tivessem sido tão terrivelmente destruídas, naquele evento chamado A Queda, nenhum de nós ficaria duvidoso ou descrente de Deus. Cremos que Ele é real, e nossa deficiência em percebê-lo não prova a Sua divina inexistência. Nossa incapacidade em examiná-lo e compreendê-lo não nos confere autoridade para determinar que Deus é uma de nossas velhas fantasias. Não conseguimos transcender ou esgotar o universo no qual somos um cisco, e nem por isso o negamos. Negá-lo seria, também, negar nossa existência.

O cristão olha para a matéria e, porque crê no Criador, vê, para onde quer que olhe, amostras da realidade que a originou. Toda matéria concentra energia, é fruto de poder. Nascemos, e chegamos a um mundo cheio de energia, poderosamente feito sob medida para que pudéssemos existir. De forma infantil, portanto, o cristão acredita que o presente personalizado que lhe foi enviado e que chegou (de graça) até suas mãos teve sim um remetente.

Viemos ao mundo, como se fôssemos trazidos à mesa de um grande banquete. Logo, cremos que antes de nosso nascimento Alguém construiu a Casa, e adquiriu talheres e utensílios de cozinha, e escolheu meticulosamente cada ingrediente, e se proveu dos eletrodomésticos ou meios necessários para, usando Sua sabedoria e habilidade, preparar o ambiente e pôr a mesa, e temperar cada prato muito bem elaborado. E só então, nos convidar para saborear e desfrutar de tudo, de todo o fruto de Seu trabalho.

O cristão acredita nesta lógica, que por ser lógica não perde seu teor de encantamento. Neste sentido, o cristão crê que a mesa posta na casa edificada é fantástica, mas a lógica implícita nos remete a Alguém. Este raciocínio parece-lhe óbvio, embora maravilhoso. E na alegria que sente, à mesa da Vida, há um profundo senso de gratidão.

Do outro lado da mesma mesa está o descrente. Este, enquanto come e desfruta, admira-se com as leis da química presentes na combustão da chama do fogão, e na cor e odores provenientes da mistura atômica dos ingredientes usados. Enaltece a ciência e a potência dos eletrodomésticos, presentes e envolvidos no processo. Mas descarta a possibilidade de que a casa teve um construtor, e que o banquete seja obra de um habilidoso chefe.

Na cozinha da Existência, cristão e ateu se deliciam com o banquete da vida. O primeiro é grato, e quanto mais saboreia mais vai se enchendo de uma felicidade humilde. Olha em volta e percebe que, desde a louça até os eletrodomésticos sobre a mesa e sobre a bancada – tudo foi operado com precisão. E mais – todo o aparato foi manufaturado pelo Cozinheiro, que é também engenheiro e artista. O cristão, impressionado, olha pela janela e vê lá fora a horta, o pomar e o campo, onde o Artesão das louças e o fabricante dos extraordinários eletrodomésticos cultiva de modo muito especial cada hortaliça, cada semente, cada fruto – Ele plantou, regou, colheu e, com sacrifício e força, preparou o cordeiro servido com muito amor. O cristão olha à volta e percebe que, na realidade, Alguém planejou o banquete todo há muito tempo, longe de seu olhar limitado e muito além de seu parco conhecimento.

Do outro lado da mesa, a admiração é totalmente diferente. O ateu está maravilhado, e tenta entender como tudo aquilo – os ingredientes, os talheres, os eletrodomésticos, a mesa posta e os pratos deliciosos, e até mesmo ele ali, presente na cena – sim, tenta entender como tudo aquilo se organizou e aconteceu a partir de uma grande explosão atômica espontânea. E neste momento, ao perceber a gratidão do cristão do outro lado da mesa, o ateu acha graça e nutre mesmo pelo outro um certo desprezo, pois a crença do cristão de que Alguém sábio e poderoso tenha trabalhado e preparado tudo para e naquele banquete, aos seus olhos críticos não passa de uma ridícula fantasia, sem qualquer fundamento intelectual e lógico.

Ambos se olham, cada qual como se estivesse diante de um louco incapaz de discernir fantasia e realidade. O que o ateu chama de fantasia, o cristão sabe que é a realidade, a partir de onde goteja o que o ateu acha ser a verdade científica absoluta. Para o cristão, a loucura está em como o outro prega a origem da realidade e em como a enxerga. Não há concordância entre ambos. A mesa é grande, e o convite da vida, com todo o seu sabor, está para todos. Mas enquanto o ateu deseja a próxima garfada, o cristão se delicia com a expectativa de abraçar o Dono de Tudo, e agradecer-lhe por toda a Sua fantástica generosidade, bondade e hospitalidade.

E quando surge o Agricultor, o Fazendeiro, o Construtor da casa e Chefe de Cozinha, Fabricante de Tudo e Pai da Vida, o cristão o reconhece – e os dois festejam muito juntos, cada vez mais e para todo o sempre! Pois a grande aventura da vida está na simplicidade fantástica e real da verdade – a verdade que, se conhecemos e experimentamos, é verdadeiramente libertadora!

domingo, 13 de julho de 2014

Entristecidos, mas sempre alegres!


Há tristezas que nos aniquilam toda a alegria, como a tristeza do remorso, da amargura e da revolta, a tristeza da perda ou da pena por si mesmo. São tristezas de morte. Mas há também um tipo de tristeza que é para a vida. No Evangelho, tristeza e alegria, inimigas desde sempre, foram radicalmente conciliadas – e o elo mágico que as conecta é o arrependimento (2 Co. 7.9,10). O Evangelho é a boa-nova de grande alegria, mas que também entristece os Homens aos mostrar-lhes como são pecadores monstruosos. Esta tristeza segundo Deus é importante, pois gera arrependimento. Apesar de sombria e dolorosa, foi projetada pelo Senhor para lançar luz sobre nossas reflexões, a fim de nos arrependermos e entrarmos pelo caminho da realidade, onde a alegria verdadeira nos espera (Ec. 7.2-4).

Portanto, a menos que aceitemos a tristeza que produz mudança de mente e de atitudes, não alcançaremos a alegria. O mundo tenta subir e alcançar o topo da alegria, mas não tem força motriz suficiente para isso. Somente o Evangelho ensina-nos a chegar lá: é preciso primeiro recuar em arrependimento, e então recomeçar. Antes de um monte sempre existe um vale, e se você quiser subir, deve lançar-se sem medo a este vale, deve descer a ele a toda velocidade. Aprendi esse princípio com meu pai, quando viajávamos em família com o velho carro carregado. E é isso que também aprendo com meu Pai celeste, quando viaja com Sua família por este mundo irregular. Só alcança o cume da alegria quem vem embalado com força do vale da tristeza.

Com lágrimas, o Evangelho nos fará ter um coração cada vez melhor, e não devemos estranhar se ele nos conduzir através de tristezas surpreendentes ou imerecidas, nem nos iludirmos achando que embarcaremos nesta jornada rumo à alegria eterna, sem antes nos arrependermos de nossas falsas alegrias pecaminosas.

O Evangelho é a boa notícia de grande alegria, ele nos leva à presença de Deus na qual transbordamos dela (Sl. 16.11). Mas lembremos que este óleo perfumado escorre para nós a partir do Calvário. Quis Deus que o quadro mais alegre fosse pintado com pinceis de tristeza e com tintas de dor, por aquelas mãos transpassadas por grandes pregos. A alegria da salvação nasceu da maior tragédia que o universo já testemunhou. Para o rio da alegria correr pelo mundo inteiro, primeiro a Rocha de sua nascente precisou ser ferida e confessou: “a minha alma está cheia de tristeza até a morte” (Mt. 26.38). Mas tudo isso aconteceu para que, em Cristo Jesus, até o trágico se transformasse em maravilhoso, até a tristeza saltasse de alegria, e até o Calvário se tornasse lugar de riso e de festa, se com humildade imitamos ao Rei sofredor que nos enche de celebração!

E se a alegria dos cristãos tem sua raiz na lástima da maior tragédia que o mundo já viu, que tristeza será capaz de roubar-lhes o sorriso? Por isto, é com razão que eles podem dizer: "Viva a alegria, a alegria que vem da triste cruz! E viva também a tristeza, a tristeza que nos conduz arrependidos ao Calvário do Salvador, fonte inesgotável de nossa alegria invencível"!

“Entristecidos, sim, porém sempre alegres!” (2 Co. 6.10a).

segunda-feira, 7 de julho de 2014

A saudável desconfiança de si mesmo

“Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me e conhece os meus pensamentos. Vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelo caminho eterno” (Salmo 139. 23-24).

No dia em que fui encontrado por Jesus, sentia-me acorrentado e à venda em um mercado de escravos. Quando Ele parou no caminho, descobri assustado que Seu olhar não buscava em mim qualquer utilidade ou interesse. Transbordavam de Seus olhos a mais pura comoção e o amor. E em Sua compaixão, imediatamente percebi que tinha chegado àquele ponto por ser um pecador que confiara demais em si mesmo. Um enganador tão bom e tão ruim, que foi capaz de trapacear a si próprio. Sim, vendido sob o pecado, e vendido por mim mesmo! Mas Jesus estava ali agora, e eu podia confiar em Seu amor e misericórdia. Levou-me para casa e fez-me filho de seu grande coração.

Foi assim no princípio. À semelhança de Pedro, mudo e falido naquela praia após a ressurreição do Senhor, havia em mim uma confiança inabalável em Deus somente. Com o passar dos anos, porém, pouco a pouco voltei a confiar em mim e em meus pontos de vista sobre tudo e todos. Não que tivesse passado a desconfiar de Deus; simplesmente comecei a acreditar em mim primeiro, até que em mim apenas. Quando estava já bem confiante, correntes se fecharam novamente sobre minha alma; e tive de gritar por socorro.

Lentamente, comecei a aprender: cristãos crescidos constantemente se questionam a respeito de si e de suas atitudes. Amam-se a si mesmos, sem dúvida, mas não ignoram que ainda são pecadores. Sabem de seu valor, mas notam também o frequente assédio das tentações sutis, embrulhadas em ótimas desculpas. E por isso mesmo, com frequência agarram seu coração e levam-no à cruz de Cristo, a fim de tudo examinar à luz da Verdade. Questionam com honestidade se suas atitudes, desejos e mentalidade já não estão contaminadas pelo egoísmo, pela indiferença e o orgulho.

Mas… isto não é coisa de gente paranoica e perfeccionista? Não, é exatamente o oposto, é próprio de quem conhece e considera suas imperfeições. Quem não se questiona, quem não duvida de si, corre sério risco. Quem não discute consigo mesmo deve estranhar-se. A maturidade (pelo pouco que sei dela) leva o indivíduo a não se impressionar ou contentar-se consigo, a não iludir-se a seu próprio respeito. Longe de ser a paranoia perfeccionista, não é paranoia porque sabe que tentar ser perfeccionista, sendo um ser tão imperfeito, pode tornar-se a maior das desgraças. Entretanto, esse autodesconfiar-se evita que o indivíduo se empolgue demais consigo, se faz algo de bom. A maturidade nunca se maquia para os outros, e sempre é capaz de uma encarada no espelho, de rosto bem lavado. A tranquilidade do pecador convertido vem de confiar sempre em Deus, e preservar o hábito saudável de continuar suspeitando de si.

Desconfiar de si mesmo é natural para quem se admite falho mesmo quando não quer, mesmo quando não percebe. Mas não pense alguém que o tal duvida de si porque não se acha capaz, ou porque não sabe quem é. Em Cristo sabemos exatamente o que podemos e quem somos. Ele nos diz quem somos, e Nele podemos. Mas aprendemos também que basta confiarmos um pouquinho em nós mesmos, para sutilmente sermos dominados e nos tornarmos quem não queremos ser.

Portanto, é necessário preservar a confiança total que tínhamos no Senhor desde o princípio. Ele deve nos guiar, e isso requer mais humildade Dele do que de nós. Mas quanta vida existe nesta bela dependência, e boas surpresas também! Quando assumimos para nós mesmos que somos falhos, e agimos bem conscientes disto, não significa que detestamos a nós mesmos – pelo contrário, verdadeiramente passamos a nos amar! Pois aquele que consegue amar a si mesmo apesar das próprias falhas, finalmente começou a amar-se como Deus sempre o amou!

terça-feira, 25 de março de 2014

Por que sofrem os cristãos


Se Deus é Deus, por que sofremos? Não temos todas as respostas, mas é através das aflições que experimentamos o sabor da superação, a textura da resistência, e o poder de nos levantarmos e caminharmos sobre todas as poeiras de nossas ruínas. O Senhor poderia vencer sozinho, mas, se assim fosse, nós não o glorificaríamos como Ele é digno, pois não teríamos a menor noção do sofrimento que há em Sua glória. Deus não é dono de um supermercado, é antes um agricultor. E a fruta tem outro gosto quando regada com nossas lágrimas, ela é mais doce, ela produz cura. A eternidade vai ter mais sabor se sofremos como Ele, se choramos para Ele – vai ter o doce suco eterno de mil alegrias!

Algumas vezes sofremos porque perdemos coisas e pessoas queridas, tiradas de nós cruelmente pela vida; o sofrimento, porém, antecipa certas percepções que de outro modo só teríamos mais tarde, na eternidade. E a percepção de que o nosso Pai celeste é mais do que tudo o que perdidamente amamos, é o maior de todos os achados. O sofrimento nos ensina isso: que a presença do Deus que ama é mais forte do que a ausência de cada coisa, ou de alguém em especial. Sofremos sim, e quando sofremos nós O amamos melhor, porque o sofrimento é a fresta pela qual vislumbramos a grandiosidade do Seu amor sofredor.

Outras vezes o sofrimento é produzido pelas injustiças do mundo. Somos roubados, somos incompreendidos, somos agredidos, somos usados e descartados, inocentes porém culpados, ricos do que vale a pena, mas vezes sem conta ultrajados e jogados na sarjeta da sociedade pelos pecados deste mundo orgulhoso. Contudo, não devemos pensar que tudo é inútil, pois o segredo deixa de ser segredo, e descobrimos que o sofrimento é a velha carruagem que traz até nós a majestosa e humilde presença do Consolador. É através das lentes da dor que santos de todos os tempos, inclusive nós (tão cheios de falhas), tivemos e temos nossa miopia corrigida; e enxergamos de repente a face sorridente de Emanuel, o Deus conosco.

Sofremos porque somos imperfeitos, e quando admitimos nossa imperfeição em meio ao sofrimento, enxergamos melhor quem é O Perfeito que por nós escolheu sofrer. Se não sofrêssemos, isto é, se a dor não cavasse tão duro dentro de nosso peito, a Sua graça não seria tão profunda em nós. Por isso, estão ordenadas aflições a nosso respeito. Ele nos ama de tal modo, excelente e misterioso, que quer que andemos em Seu trilho; e isso não deveria nos causar estranheza. Se estamos indo para a mesma alegria Dele, é somente por amor que Ele nos pôs nas mesmas pegadas sangrentas de Seu Filho.

“Mas alegrem-se à medida que participam dos sofrimentos de Cristo, para que também, quando a sua glória for revelada, vocês exultem com grande alegria.” 1 Pe. 4.13

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Dias Desiguais

“Não digas: Por que os dias passados foram melhores do que estes? Pois perguntar isso é falta de sabedoria” (Ec. 7.10)

Papai me presenteou um grande quebra-cabeça quando eu ainda era muito pequeno, o qual tenho até hoje, e ainda não o terminei de montar. O começo foi um grande desafio. As primeiras peças sempre são difíceis, não é mesmo? Mas, em volta delas, pouco a pouco, as demais começam a fazer sentido. Algumas peças desse grande quebra-cabeça são muito belas, enquanto outras parecem não fazer qualquer sentido, por muito que se olhe para elas. Algumas peças são cheias de luz e de cores, enquanto outras são escuras e enigmáticas. Houve fases em que estar ali, tentando encaixar cada peça em seu exato lugar, pareceu-me como um desgastante pesadelo. Em outros momentos, porém, confesso que o desafio foi vibrante e prazeroso.

- Que peças estranhas são estas, papai? – perguntei-lhe, certo dia. Ele apenas olhou-me, em silêncio, e eu prossegui: - Acho que vieram erradas, elas não devem fazer parte deste quebra-cabeça. Não se encaixam em lugar algum! Acho que vou jogá-las fora!

- Espere, meu filho. Tem partes que demoram mais para entendermos aonde se encaixam. Mas não jogue fora o que hoje parece não fazer sentido, pois mais adiante isso certamente vai lhe fazer falta! Descartá-las seria falta de sabedoria.

- Mas por que as outras peças foram diferentes destas? As peças lá do começo eram muito mais coloridas e bonitas.

Papai soltou um suspiro e explicou:

- Filho, se todas as peças fossem iguais, do mesmo formato e com a mesma cor, isso não seria um quebra-cabeça, ou seja, ele não teria em si mesmo nenhuma conquista ou segredo a ser revelado no fim. Por isso, não é sábio perguntar por que as peças de antes foram melhores do que estas de agora. Se você se apegar demais às peças de ontem, e largar as de hoje, você vai crescer e ficar velho, sem contudo jamais avançar em seu trabalho de descoberta. Com o tempo, você perceberia que, por mais belas que sejam as peças do seu passado, elas precisam de outras diferentes para que tenham um verdadeiro sentido. Quando a imagem do quebra-cabeça estiver mais perto do fim, você vai entender que foram as peças mais estranhas e escuras que fizeram contraste e acrescentaram brilho ao quadro, exatamente como acontece em uma noite de céu estrelado. Por isso, meu filho, não fique comparando as peças de ontem com as peças de hoje ou de amanhã, porque elas são e precisam ser diferentes. Se fossem sempre iguais, não haveria razão para você e eu estarmos juntos nisto. Mas, à medida que você continuar e ver o que lhe será revelado com a união de todas elas, dirá: valeu a pena! As peças belas precisam das peças feias, porque são as peças feias que fazem você reparar como são belas as belas. Mas beleza de verdade seus olhos verão quando tudo isto aqui tiver terminado. Então, você olhará para tudo e, sorrindo do jeito que eu lhe amo ver sorrir, vai entender e dizer: obrigado, papai, por me presentear o grande quebra-cabeça quando eu ainda era muito pequeno – e por me ajudar a não parar!

Bem, hoje eu estou aqui, escrevendo, e ainda não o terminei de montar. Mas, aos poucos, as pecinhas vão se unindo. E se me afasto por um segundo, posso observar, feliz, que todas elas juntas estão me revelando, pouco a pouco, a face amada do meu senhor Jesus Cristo!

Portanto, desde já, muito obrigado Papai!

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O Fantástico Milagre de Sempre

Hoje resolvi parar e rever, durante alguns minutos, tudo de bom que tem acontecido em minha vida. Não me interprete mal; escrevo em uma quinta-feira ordinária de Outubro. Nada de especial aconteceu hoje. O dia transcorreu normalmente, e agora está chovendo mais uma vez, aquela chuva miúda e preguiçosa. Há meia hora, comi atum em lata com tomate e ovos. Antes disso, tomando banho, percebi que o xampu está quase no fim. Mas, paralelamente a essas pequenas ordinarices, hoje foi também um dia totalmente mágico.

Coisas incríveis aconteceram desde manhã. Enquanto eu ainda estava dormindo, o universo todo girava e em poucos minutos amanheceu; trata-se de um fenômeno espetacular e até o momento infalível. Depois saí de casa e escapei ileso de mais de uma centena de modos diferentes de morrer. Por alguma razão desconhecida, minha garganta continuou alguns centímetros aberta e pude respirar normalmente. Meu coração pulsou muito bem, o tempo inteiro e sem descanso. Na hora do almoço – veja só que fantástico – tive o privilégio de almoçar. Tive sede também em alguns momentos – não a sede desesperada de quem atravessa um deserto africano – e facilmente achei água para beber. Pude caminhar por aí sem medo de me acertarem com um fuzil ou bazuca, porque não há guerra nas redondezas. Aliás, pude caminhar… não é incrível? Sou tão afortunado que minha reclamação é contra mim mesmo, que preciso emagrecer. Abro os olhos e enxergo. Falam comigo e processo o que querem me dizer, pois consigo entender as pessoas. Pode soar idiota isso, porque para nós funcionar parece extremamente normal… mas não é. Funcionar é um verdadeiro milagre.

Hoje tinha tudo para dar errado, mas após horas de risco imenso estou aqui agora, escrevendo, satisfeito, limpo, abrigado, respirando, e sem dor alguma que me impeça de raciocinar. Tinha tudo para dar errado, as probabilidades eram quase infinitas. Mas milagres aconteceram sucessivamente para que eu estivesse simplesmente sentado neste sofá. Pensando bem, milagres numerosos têm ocorrido consecutivamente durante décadas em minha vida e na história de muitas pessoas que conheço. Apenas um desses milagres já seria motivo suficiente de muita gratidão a Deus, mesmo que os demais não tivessem acontecido. O tempo passou e, por milagre, nós continuamos aqui; mas, infelizmente, acostumados demais com a mágica de estarmos vivos. Cada milagre é digno de uma celebração exclusiva, e milagres que se repetem não deixam de ser milagres.

E é por isso que nesta quinta-feira comum de Outubro, enquanto a chuva perseverante cai do outro lado da janela, sentado neste sofá quero exaltar o Deus maravilhoso. Se algum dia esses milagres não se repetirem mais, não vou me lembrar da rotina perdida para então valorizar e amar o que já não tenho. Mas que Deus nos ajude, que todas as nossas lembranças de dias normais sejam felizes, e no futuro possamos dizer: “Era simples, mas também fantástico; fomos tão ricos que tínhamos até mesmo tudo que precisávamos. E, graças a Deus, a gente soube desfrutar!”.